Home Editoriais Cidades Após provar que não cometeu crime, ele quer refazer a vida

benedito-da-abadia-071016-14FERNANDA MORAIS

No dia 10 de julho do ano passado, uma menina de cinco anos desapareceu enquanto brincava em uma feira no Bairro de Lourdes, em Anápolis. Na madrugada do outro dia, a criança foi deixada em um posto de combustíveis às margens da BR-060. Após passar por exames no Instituto Médio Legal (IML), ficou comprovado que ela sofreu abuso sexual. O caso foi noticiado e causou muita comoção na cidade.

Um dia após o desaparecimento da menina, a polícia prendeu Benedito Moreira da Abadia (foto), hoje com 58 anos, em sua casa na Vila Sul, como suspeito de ter sido o autor do estupro. Benedito ficou preso por mais de quatro meses até que, por meio de um habeas corpus, conseguiu sair da cadeia e responder pelo crime em liberdade.
Recentemente, laudos de exames realizados pelo IML tanto no homem, quanto na menina, comprovaram que Benedito é inocente e, mesmo após ter sido “reconhecido” pela criança, pagou por um crime que não cometeu.

A reportagem do JE conversou com Benedito na manhã da última quinta-feira (6) na casa de sua irmã no Residencial Ander. Em mais de uma hora de entrevista, Benedito relatou como tudo aconteceu a partir do momento que a polícia foi até a sua casa e o levou preso. Ele disse que passou por momentos de muito medo, mas nunca deixou de acreditar que conseguiria provar a sua inocência.

Acompanhado de sua filha, Miliana Martha Mesquita Moreira, Benedito contou que depois de trabalhar por 15 anos vendendo galinha na feira, teve que mudar de ocupação. Hoje é pedreiro e tem o sonho de conseguir pagar faculdade para sua única filha. O homem disse que nunca conseguirá esquecer o episódio e espera que a Justiça identifique o verdadeiro culpado do estupro da menina.

Que dia o senhor foi preso?
A menina sumiu dia 10 de julho do ano passado. No dia 11 de julho eu fui preso. A polícia me buscou em casa 7 horas da noite e me levou. Fiquei na delegacia a noite toda e no dia seguinte (12/07/2015) subi para o presídio. Fiquei preso aqui em Anápolis.

E que dia o senhor saiu?
Meu advogado conseguiu um habeas corpus e sai da cadeia no dia 12 de novembro do ano passado. Fiquei preso quatro meses e alguns dias.

O senhor poderia me contar como a polícia chegou à sua casa?
Fui preso na minha casa, na Vila Sul. Foi surpresa. Não estava esperando. Eu trabalho vendendo galinha na feira. Eu estava tranquilo, arrumando as galinhas para levar para feira no outro dia. De repente minha casa ficou tomada de polícia. Eles entraram gritando “a casa caiu”. Eu não entendi e perguntei o que estava acontecendo. E a única coisa que me respondiam era que “a casa caiu”. Aí já começaram a me encostar na parede com os procedimentos agressivos que eles usam quando vão prender alguém.

Eles foram agressivos?
Não foi violência física. É o tratamento que eles têm com bandido e que a gente não está acostumado. Nunca tive problema com polícia. Eles me colocaram com a cara na parede, me algemaram e minha palavra não valeu nada. Tudo que eu falava, eles diziam que era mentira. Então preferi ficar calado porque eles já avisaram que qualquer coisa seria usada contra mim.

O senhor não resistiu, aceitou a prisão?
Ah, não tinha nem como. Foi um choque a situação. Para te dizer a verdade, na situação que vivemos, eu não sabia se era a polícia mesmo ou se era assaltante. Na minha cabeça eu não tinha feito nada, não devia nada, então não estava entendendo nada. Foi estranho porque por volta das 3 horas da tarde, do dia que fui preso, recebi um policial na minha casa que pediu para tirar foto do meu carro. E eu deixei. Só perguntei por que ele estava fazendo aquilo e ele me disse que era procedimento de rotina. Não me explicou nada. Minha filha já trabalhou naquele projeto de videomonitoramento aqui em Anápolis. Eu liguei para ela e perguntei o que poderia ter acontecido para o policial tirar foto do meu carro. E ela me disse que a suspeita era que teria um carro parecido com o meu roubando na região, mas como eu não estava devendo nada, não me importei. Nesse mesmo dia eu trabalhei o dia todo e machuquei o olho. Parece que era para acontecer comigo mesmo. Com meu olho vermelho, talvez a impressão do policial era que eu tinha bebido ou usado drogas.

Nesse dia o senhor saiu de casa?
Eu sai com meu irmão para ir ao Hospital Municipal ver o que tinha no meu olho. Fui para o hospital depois que o policial tirou foto do meu carro. Quando meu irmão chegou para me buscar, o policial ainda estava lá em casa. Agora, se eu tivesse feito alguma coisa e o policial tivesse ido lá em casa, eu teria fugido. Não teria voltado para casa.

A polícia levou o senhor para delegacia?
Fui para delegacia. Eu até falei para eles que se eu tivesse feito alguma coisa, eu poderia ter fugido depois que o policial foi lá em casa. Eu sai de carro, fui ao hospital, fiquei lá uma hora e voltei para minha casa. Talvez eles até estivessem me vigiando, mas eu sai, fiz o que tinha que fazer e voltei, estava tranquilo.

Então logo que o senhor voltou a polícia chegou?
Isso. Como eu não estava sentindo mais dor nos olhos, fui para o quintal cuidar das galinhas. Minha ideia era organizar as galinhas e já separar as que eu ia levar para vender na feira. Quando eu estava mexendo nos poleiros, a polícia chegou e me abordou gritando “a casa caiu, a casa caiu”.

O senhor já sabia do sumiço da menina? Passou na cabeça do senhor que poderia ser por isso?
Já sabia sim. Na hora que me algemaram e eu perguntei muitas vezes o que estava acontecendo, e me responderam que eu já sabia o que era. Sem pensar eu perguntei se eles estavam pensando que eu tinha culpa do desaparecimento da menina, e repeti que eu não tinha feito nada. Depois que falei da menina, eles alegaram que eu estava confessando o crime.

Então o senhor chegou a perguntar sobre a menina?
Sim, falei. Eles não me contaram o porquê estavam me prendendo e eu queria saber o motivo.

O senhor fazia feira no Bairro de Lourdes?
Sim.

Mas o senhor conhecia a menina ou a família dela?
Não, até hoje não conheço. Tenho até medo de correr algum risco por conta de perseguição de algum familiar ou conhecido dela que não saiba que fui inocentado. Espero que todos tomem conhecimento que não tive culpa. Na época tudo foi muito divulgado, as pessoas viram na televisão. E agora que sai da cadeia, que ficou comprovado que não fui eu, não teve a mesma divulgação. Mas ainda tenho medo porque sempre fica algo no ar, porque isso é uma coisa que, a meu ver, não tem explicação. As pessoas ficam indignadas.

Como o senhor recebeu a notícia que a menina reconheceu o senhor?
Um policial chegou e me disse que minha única saída naquele momento era a menina dizer que não era eu. O policial também falou que a menina era esperta e inteligente. Nessa hora eu fiquei com esperança porque acreditava que pelo fato de a menina ser esperta, ela falaria que não tinha sido eu e ai a polícia me liberaria. Não sei, mas acredito que ela possa ter sido induzida a falar alguma coisa. Eles pediram para eu colocar uma roupa que eu não estava com ela, e essa roupa era parecida com a do suspeito que tinha levado a menina. Eles buscaram muitas coisas para o trabalho da polícia e acabou terminando na minha condenação. Buscaram roupas na minha casa. Um policial disse para juíza que ele tinha 30 anos de estrada e que nunca tinha errado. Eu me assustei. Todo mundo erra, e ele errou comigo.

Depois que a menina disse que era o senhor, o que passou pela sua cabeça? Já imaginou que seria preso?
Ninguém me falou nada. A coisa que mais ouvi foi que a tal casa tinha caído. Me chamaram para conversar com o delegado, e foi o delegado que disse que minha prisão estava decretada e foi só isso. Me levaram para o presídio. Nesse momento eu pedi para Deus me ajudar. Falei para o delegado que tudo estava contra mim, mesmo eu sendo inocente.

E o senhor afirmava o tempo todo que era inocente?
Ah, eu não podia assumir a culpa daquilo que não fiz. Na delegacia me pediram para assumir o crime o tempo todo, que era melhor para mim. Outra coisa, toda minha família ficou revoltada porque o dia que a menina sumiu, eu não tinha ido à feira, eu passei o dia com minha família, almocei e jantei com minha filha. Toda minha família saiu desesperada e ouviu insultos. Chegaram a dizer que a minha família estava escondendo um criminoso. Foi uma bagunça. Foi tudo muito sério. Eu sempre digo que as pessoas devem ter muita responsabilidade naquilo que elas fazem. Seja um “caboco” igual a mim, vendedor de galinha, que seja um policial, ou um médico, tenha responsabilidade, porque um erro como esse que cometeram comigo, estragou a minha vida. Estraga uma vida inteira. Minha filha ficou exposta. Foi muito dolorido ver a minha filha, desesperada atrás de mim no presídio. E ela sofria porque sabia da minha inocência, ela estava comigo o dia todo. Almoçamos e jantamos juntos. Minha filha mora com minha irmã, eu sai aqui da casa delas era mais de 8 horas da noite, a menina sumiu antes, por volta das 6. E mesmo assim teve gente que disse que me viu na feira, só por maldade.

Como que o senhor virou suspeito? Porque a polícia veio atrás do senhor?
Por causa do meu carro, eu imagino. O meu carro era igual ou parecido com o que viram com a menina. Foi isso que me falaram.

Como foi a chegada ao presídio?
Eu me sentia torturado. Eu tive muito medo, porque a gente sabe o que acontece quando algum tarado chega ao presídio. Acontece agressão física e sexual. Eu fiquei com muito medo, sensação de desespero. O psicológico da gente fica totalmente mexido, eu não consigo nem falar o que eu achava que aconteceria comigo. Mas o tempo todo eu tive força e pedia para Deus. Eu rezava e falava com Deus que naquele momento era eu e ele. E Deus sabia da minha inocência, Deus sabia que minha palavra não tinha valido nada. E por Deus, eu via que os outros presos vinham para cima de mim com vontade de me bater, mas de repente, eles paravam e não faziam nada. Quando me levaram para a cela, todo mundo foi para cima de mim, mas eu consegui falar e os presos não me bateram.

O senhor chegou a ser agredido alguma vez?
Levei um tapa. Um tapa muito forte na cara de um detento logo quando me levaram para raspar o cabelo.

O senhor ficou na cela com quantas pessoas?
Quando cheguei eram 13 presos, mas já colocaram até 15 pessoas na mesma cela.

E como foram esses quatro meses de prisão?
Eu ajudava em alguma coisa. Lavava roupas, sobrevivia.

E depois que o senhor saiu? Como foi andar pela rua já que muita gente viu o senhor na televisão.
Foi bem triste também. Mudou a minha rotina. Eu via o preconceito no olhar das pessoas. E o dolorido é que sempre fui do bem, mas as pessoas olhavam para mim assustadas, achando que estavam enganadas ao meu respeito. Sofria e ainda sofro com isso.

Já foi ofendido na rua?
Já ouvi palavras duras. Uma vez estava na rua e vi quando uma mulher puxou o filho dela e disse que tinha medo de tarado. Dói (pausa). Não é fácil.

Já voltou a trabalhar? A rotina do senhor voltou ao normal?
Aos poucos estou voltando ao normal.

Já voltou para a feira?
Nunca mais. Mudei de profissão. Agora trabalho como pedreiro.

Até isso mudou na vida do senhor?
Nunca voltei na feira. Tenho medo. Fomos orientados a não ir também para evitar que as pessoas falassem mais, ou pensassem que estaríamos coagindo alguém.

Quantos anos de feira?
Foram 15 anos de feira.

Em algum momento da vida, o senhor imaginou passar por esta situação?
Nunca. Se eu tivesse feito, tudo bem, mas pagar por um erro, e um erro grave, que eu não cometi, nunca imaginei.

Como o senhor recebeu a notícia que os laudos dos exames feitos no IML inocentavam o senhor?
Isso já estava no meu coração. Poderia demorar, mas eu seria inocentado. Até o pessoal da cela passou a acreditar em mim. Os presos acreditaram em mim e a polícia, não. Eu tenho família, tenho filha. Trabalhei minha vida toda, já fui leiteiro, já ajudei criança que não tinha o que comer. Eu não sou doente, eu não sou criminoso.

O senhor pretende encerrar esse capítulo ou vai entrar na Justiça?
Desde novembro, quando sai da cadeia, o meu pensamento era sair de todo esse sufoco e provar minha inocência. Mostrar para sociedade que eu não sou o marginal que afirmaram e queriam provar que eu era. Eu tive muito prejuízo financeiro, minhas galinhas sumiram, tudo que estava no meu carro sumiu quando eu fui preso. Meu engenho de moer cana sumiu, eu ia trabalhar com galinhas e ia começar vender caldo de cana. Mas meus recursos sumiram. Fui preso e meus planos foram desamarrados. Eu tenho um sonho, eu quero formar minha filha, é a única herança que posso deixar para ela. Ela começou a fazer faculdade, mas teve que parar porque eu não estava dando conta de ajudar. Minha intenção é fazer isso por ela.

Vai ser difícil superar esse episódio?
Vou sofrer por isso eternamente. Eu repito, quem trabalha tem que ter muita responsabilidade. Eu dirijo há 30 anos e nunca tive uma multa. E um episódio como esse pode destruir uma vida. Foi muita humilhação. Minha filha me viu preso. Chegaram a dizer que eu abusava da minha filha, minha própria filha. Eu criei ela sozinho, minha mulher morreu quando minha filha era bebê. Eu contei com a ajuda da minha irmã. Enquanto eu trabalhava, minha irmã olhava minha filha, mas eu sempre estive ao lado dela. Isso que aconteceu comigo foi realmente foi muito triste. Alguém cometeu um crime, ficou impune e meu nome foi jogado na lama. Sou trabalhador, sou humilde, o que eu ganho é para ajudar minha casa, minha filha. Um dia, enquanto eu lavava vasilhas no presídio, um preso chegou e começou a conversar com os outros. Ele dizia que a vida era engraçada. Enquanto ele estava preso por fazer coisas erradas, dividia a cela com um velhinho, no caso eu, que era inocente, e que mesmo assim estava dividindo cela com meliantes. Isso foi o preso que disse. No final da conversa, o rapaz me questionou se eu ainda pensava que valeria a pena ser honesto nessa vida.

O senhor sabe se a polícia tem outro suspeito do crime contra essa menina?
Desde quando aconteceu o incidente e eu fui preso, minha filha, minha irmã e outras pessoas da família passaram a buscar mais informações sobre o que poderia ter acontecido. Tomamos conhecimento que em janeiro do ano passado, um homem teria estuprado uma menina que estava no feirão do Bairro de Lourdes, e que tudo tinha acontecido de forma parecida com essa nova vítima de julho, a qual fui preso como suspeito. Parece que esse homem morava na região do sumiço dessa menina. Esse mesmo homem já teria abusado de mais vítimas em outros estados. Quando a situação ferveu aqui em Anápolis e me levaram para cadeia, ele se mudou para Goianira. Também soubemos que em Goianira ele fez mais uma vítima de estupro, foi preso e morto na cela.

Isso está no processo do senhor?
Pedimos para exumar o corpo desse homem porque depois de passar por exames no IML, o mesmo DNA que foi encontrado nessa vítima em Goianira corresponde com a menina daqui de Anápolis, a mesma menina que fui culpado. Não sabemos se foi feito um novo exame nesse homem ou foi feito um cruzamento de informações no banco de dados da polícia. Nosso advogado está acompanhando tudo. Nesse momento que estou em liberdade, eu quero que seja confirmado quem foi o autor do crime dessa menina aqui em Anápolis. É importante para mim, como diz o ditado “matar a cobra e mostrar o pau”. Quero que tudo termine e as pessoas saibam que sou inocente, mas que o autor do crime seja reconhecido mesmo estando morto.

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